Maio de 2024 foi atípico? Espero que não. Que a média de jogar um tabuleirinho dia sim e dia não seja o novo normal em nossas pacatas vidas. O bom é que a temporada foi marcante não foi nem só pela quantidade, mas também pelos feitos históricos, a começar pela caixola do Parade (2007; Naoki Homma), que não saía da estante desde 2018.
"Somos crianças grandes, meu bem,
A lamentar o sono que não vem."
Lewis Carroll, em Alice Através do Espelho
A parada é da boa
O verme para jogar Parade cresceu depois de reler Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho no início do ano. Engraçado que não tenho o hábito de reler ficção. Foram pouquíssimos os livros que revisitei por puro prazer - alguns foi mais por necessidade, pela consulta. Acredito que a existência de uma fila inesgotável de novidades não me instiga às releituras. Entre ceder à curiosidade por algo novo e revisitar uma obra, acaba prevalecendo a avidez pelo desbravamento.
Eis que a Confraria Lúdica se reuniu num belo domingo para conhecermos a casa nova de Beatriz e Rafael quando, certa hora, saquei da mochila o joguinho de cartas com ilustrações belíssimas (Chris Quilliams é o nome da fera) dos personagens de Lewis Carroll. Parade é um carteado ao estilo fishing: nós jogamos cartas da nossa mão e vamos pescando - capturando - cartas da mesa até, ao fim da partida, contar os pontos a partir do que pegamos para si. Só que, como consta no manual, "no País das Maravilhas nem tudo é o que parece, e o que parece pode ser o que realmente é, mas ao contrário! Logo, o jogador com menos pontos é o vencedor!". Há um desfile - uma parada - acontecendo e nós, organizadores do evento, temos que lidar com a desistência e a reclamação do chapeleiro, da Alice, do Humpty Dumpty e outros mais. Essa turma reclamona na nossa frente é tudo ponto de desvitória (rá!) no final.
Depois de duas partidas enlouquecendo com o mundo invertido de Alice, restabelecemos o controle total das nossas faculdades com o clássico, relaxante, apaziguador e perfeito Carcassonne (2000; Klaus-Jürgen Wrede). Muito especial aquela cópia da Grow comprada pelo Rafael nas Casas Freitas do Eusébio nos idos de 2016.
Clube do Tabuleiro
Tenho tentado comparecer a todas as edições - faltei no abril despedaçado - do Clube do Tabuleiro na Balboa's Hobby Games. É um evento mensal da luderia, que organiza uma manhã de sábado com café e várias mesas com jogos selecionados a partir de um tema. É sempre muito gostosinho porque todos na luderia são muito atenciosos e os clubistas são gente muito boa. Muitos estão indo a todas as edições, então a gente acaba se conhecendo um pouco mais a cada mês, o que é bem agradável - outro dia eu conto do amigo que conheci no clube de janeiro e até hoje joga comigo aqui em casa. Maio foi com o tema de Idade Média: estavam postos à mesa Lords of Waterdeep; Kingsburg; Dungeon Lords; Dungeon!; e Era.
Já fui na intenção de experimentar a edição de aniversário do Dungeon Lords, mas ninguém se empolgou tanto quanto eu por um Vlaada Chvátil demoradão, então fomos de Lords of Waterdeep (2012; Peter Lee, Rodney Thompson), consenso total entre os outros clubistas ali buscando uma mesa naquele momento. O tema não é dos meus preferidos - isso de fantasia D&D nunca me fisgou -, mas ele até está pouco presente. A delícia aqui é juntar cubinhos de madeira e completar os objetivos - sim, são Quests, eu sei - com a boa e velha alocação de trabalhadores, coleção de cartas e uma pitada de ferrar os coleguinhas uma vez ou outra - nada demais, tudo na maior educação.
Lords of Waterdeep é simples, objetivo - agora não estou me referindo a quest - e, o que mais importou, muito divertido. Impressionou. Perdi a partida por um mísero ponto! Foi Renata com 138, euzinho com 137 e Petrus com 135, todos bem coladinhos.
Harmonizações
A despeito da minha intolerância à lactose, há mister destacar, uma vez que se tome a dose devida da enzima e que se tenha tanto café quanto uma Gilmore possa tomar, o saboroso bolinho madalena servido na merenda da Balboa's. É correto afirmar que ele não vai à mesa em todas as edições - a padaria consegue cometer o pecado de deixar faltar -, mas arrebata corações e estômagos sempre que se faz presente. O nome da iguaria, dizem, homenageia a confeiteira responsável pela receita, que, em 1755, encheu a pança do duque Stanislaw Leszczynski - nunca vi mais gordo. Aliás, o rótulo da padaria grafa a guloseima de madeleine, deixando tudo mais chic do que realmente é.
A "doce" e única diversão possível do capitalismo tardio
Food Chain Magnate (2015; Jeroen Doumen, Joris Wiersinga) sempre esteve entre os melhores jogos que pude experimentar - já esteve no cume (viva Falcão, do penico à bomba atômica) e hoje ainda figura lá nas alturas. Não entendo como um jogo tão burocrático, exigente e punitivo também pode ser bom. Se esse é o jeitinho dele, eu o aceito como ele é.
Em Food Chain Magnate, somos magnatas de redes de restaurante de comida expressa - isso, isso, isso: fast food. Trata-se de um jogo essencialmente econômico, mas bem diferente de outros nessa categoria, como Brass, Age of Steam, Through the Ages ou Power Grid. Aqui, a gestão de Recursos Humanos é pesada: recrutar, treinar, promover, pagar salários. É bem desafiador gerenciar tantos funcionários e encaixá-los num organograma otimizado turno a turno ao mesmo tempo em que precisamos nos concentrar com o estoque do restaurante, com a publicidade do serviço e com o atendimento da demanda (sempre calculando as melhores rotas nos quarteirões do bairro). Cada passo que damos repercute na partida, e não há espaço para muitos erros. Adicione isso aos passos da concorrência, que fará de tudo para monopolizar os serviços demandados - ganhando sozinha a bolada - ou baixar os preços ao ponto de conquistar toda a clientela. A concorrência vai ganhar menos? Vai. Mas é ela a única a ganhar enquanto você chora na mesa da gerência a se perguntar por que não contratou mais uma garçonete.
Minha primeira vitória em Food Chain Magnate foi acontecer só agora nesse abençoado maio. Claro que, contrariada por ter perdido uma partida, Marcela, a experiente gerente executiva, reivindicou uma revanche no mesmo dia e venceu por humilhantes 278 a 87. Não sou bom em Food Chain Magnate; Food Chain Magnate ser maravilhosamente bom é o que me basta.
Harmonizações
Na ingênua tentativa de tornar uma partida de Food Chain Magnate doce, tomamos café com biscoito holandês, o que combinou bastante com o jogo uma vez que a editora e os designers são dos Países Baixos. A graça do biscoito holandês é deixá-lo cobrindo a xícara de café por alguns segundos. O vapor do café amolece o biscoito e o recheio que vem dentro dele, tornando a experiência café com biscoito estonteante, assim como a experiência de jogar Food Chain - cada um atordoa à sua maneira.
Balança o saco
"Vale do Loire no século 15. Como príncipes influentes, cada jogador usa todos os seus esforços para fazer seus principados florescerem através de negociações e vendas bem planejadas". Fora citar o século em número arábico, o que ficou bem esquisito, não há nada mais de curioso nesse contexto histórico presente no fundo da caixa da Grow. Para mim, forçar um tema não é demérito algum nos jogos de tabuleiro, assim como uma ilustração descuidada. E se ainda falo de um jogo mesmo quando ele é descontextualizado e feio, é porque o design brilha em nossos corações.
No universo dos jogos de tabuleiro, nos acostumamos a chamar de eurogame - para os europeus, apenas game - aquele jogo estratégico, focado em gerenciamento, pouco dependente de tema e de sorte. Não é regra talhada em pedra, mas é certo que essas características se repetem numa gama considerável de títulos europeus. Esse estilo de design é bem forte na Alemanha e tem Castles of Burgundy (2011; Stefan Feld, do também maravilhoso Trajan) como um exemplo contundente. Essa última partida também me deu a primeira vitória nos castelos da Borgonha - nem ligo tanto para isso, juro, mas é curioso o que o mês de maio me proporcionou agonisticamente. Dessa vez, Marcela não teve tempo para a revanche em que ela logo voltaria a me vencer elegantemente.
O que mais gosto em Castles of Burgundy é da rapidez dos turnos. Rolamos os dois dados e o resultado deles já afunila consideravelmente as possibilidades, direcionando a estratégia para o que sobra de oportunidade. O que parece ser uma dependência da sorte nos dados é, na verdade, um engenhoso mecanismo de nos forçar a lidar com as circunstâncias, e isso é de uma elegância absurda.
Agilizada boa
Usamos esses saquinhos de pano e já cravo que nunca mais quero jogar sem eles. As cartelas hexagonais já ficam guardadas nos sacos e tudo separado por cor. A preparação da partida agora só dura dois minutos e não precisamos mais "embaralhar" as peças antes de colocá-las na mesa, tornando a vida mais simples, bela e aconchegante.
Jogo de Star Wars sem Star Wars
Na coleção desde fevereiro de 2020 (foi sorte aproveitar aquele saldão Balboa's a pouco dias de o mundo capotar), Battlestar Galactica: The Board Game (2008; Corey Konieczka, de Star Wars: Rebellion e Eldritch Horror) nunca tinha visto a cor da mesa. O fator pandemia + parentalidade fez minguar, por muito tempo, qualquer possibilidade de dedicação a um manual denso e repleto de detalhes seguido de uma longa explicação e umas 4 horas de partida regadas a conluios e traições. Esse dia chegou em mais um domingão da Confraria Lúdica, que, se puderem acompanhar, começou se reunindo para almoçar na ventilada La Ticiane - esse nome é muito bom -, emendou na farmácia da Cidade 2000 - mais uma excelente alcunha, dessa vez para qualificar um bairro - para que dois dos nossos confrades, vejam só, furassem a orelha e, enfim, partiu mais uma vez para o belo lar de Beatriz e Rafael, onde, pela tarde, uns jogaram Arte Moderna (1992; Reiner Knizia) enquanto outros curtiram uma piscina e, pela noite, Italo e eu, remanescentes, nos juntamos ao casal anfitrião para o tão aguardado Battlestar Galactica.
O jogo é semicooperativo: há duas equipes, mas o lado de cada jogador é mantido em segredo. Como na série homônima de 2003, numa realidade futurista e distópica, os poucos humanos que sobreviveram a um ataque nuclear orquestrado pelos cylons (robôs inteligentes que acharam interessante eliminar a raça que os criou) se encontram em algumas naves em órbita. Os humanos querem sobreviver às limitações de combustível, moral e comida até chegarem a Kobol (um planeta habitável muito parecido com a Terra). Enquanto isso, os cylons permanecem na cola das naves humanas, atacando-os sempre que possível. Muito mais fracos, a melhor saída a curto prazo para os humanos é saltar (viajar em velocidade acima da velocidade da luz) e torcer para que a robozada esperta demorem a achá-los. O agravante é que os cylons desenvolveram a habilidade de se camuflar entre os humanos a ponto de não ser possível identificar quem é quem. E piora: além de se parecerem com os humanos, alguns cylons estão "adormecidos", acreditando piamente que são humanos até se despertarem como verdadeiros montes de lata - dá para imaginar que tem cylon infiltrado nas naves humanas praticando as maiores trairagens.
É impressionante notar que a história da série que acabei de resumir é exatamente a história de uma partida do jogo. Arrisco a afirmar que Corey Konieczka projetou o jogo de tabuleiro mais bem adaptado de uma obra audiovisual. Battlestar Galactica: The Board Game carrega consigo todas as tensões da série: intrigas, decisões difíceis a serem tomadas, incertezas, desconfianças, escassez de recursos, está tudo aqui. Na primeira metade da nossa partida, não havia nenhum cylon entre nós (o jogo foi pensado para que, pelo sorteio das cartas de equipe, nunca se saiba ao certo quanto à presença de traidores) e tudo era perfeito: todos de mãos dadas como se estivéssemos num folheto dos Testemunhas de Jeová. Na segunda metade a coisa mudou de figura: eu, simpatizante, revelei-me para o lado dos cylons; Beatriz também se revelou na rodada seguinte, aí foi ladeira abaixo - não encontrei uma analogia boa para essa expressão no contexto espacial - para os humanos Italo e Rafael, que logo perderam toda a população, chegando à extinção.
Só de escrever esse relato, a vontade é de largar tudo e arrumar mais quatro pessoas para jogar Battlestar Galactica: The Board Game agorinha.
O fator econômico e o que une a Caledônia com a dor de cabeça
Era inadmissível que um dos melhores jogos da estante estivesse recluso numa caixa há exatos cinco anos. Revisitar Clãs da Caledônia (2017; Juma Al-JouJou) foi um exercício de nostalgia e deleite sem igual. O design é tão redondinho que nem precisei reler o manual. À medida que cuidava da preparação, as regras vinham à tona tão naturalmente quanto a bolha procurando a superfície - encha-se de orgulho, caro Domingos Olímpio. Muitas certezas foram derrubadas nessa partida; quebras de paradigmas sem precedentes. Finalmente, venci em Clãs - já falei da atipicidade desses tempos - depois de sete partidas, e foi por muito pouco (Regis 120 x 119 Marcela). Além da minha derrota, outra propriedade que parecia imutável aqui em casa era o ostracismo que recaía sobre qualquer jogo que ganhasse um componente pomposo: as placas de acrílico perfuradas que comprei lá em 2019 para sobrepor os tabuleiros individuais estavam virgens até essa partida. Elas decidiram esperar.
Enfim, Clãs da Caledônia é um jogo econômico levemente disfarçado. Dá para perceber que tudo gira em torno da economia - tem um mercado especulável e flutuante e também tem o custo de produtos e terrenos - mas a gente vai escalonando a nossa produção de um jeito que os rendimentos logo vêm, aí a nossa preocupação com o dinheiro, embora seja sempre relevante, concorre com o gerenciamento de outros elementos, como os contratos, os objetivos de final de rodada e a construção da rede de produção no mapa, bem como a expansão dos povoados. Em paralelo a outros títulos bastante carregados no fator econômico, não é nada comparado à punição sem dó nem piedade de um Brass: Lancashire ou um Food Chain Magnate. Clãs da Caledônia até nos bota para rachar um pouco a cuca, mas terminamos a partida ainda com a cabeça colada no pescoço, o que é bastante aprazível.
Harmonização
Tenho uma lista de músicas preparadas para quase todos os jogos da coleção, mas a gaita de fole - a Escócia tem outras excentricidades - azucrina o meu juízo de um jeito diferente, e olha que sou um admirador de sanfonas e realejos. Nunca sei se a dor de cabeça que sinto ao final da partida é pela dificuldade do jogo ou é pelo som perturbador que emana do chifrudo instrumento musical. Vixe!
Gatos mimados dão mais pontos de vitória
Com 29 partidas, Cat Lady (2017; Josh Wood) é o segundo jogo que mais joguei na vida. Tudo culpa da Marcela, que sempre lembra dos bichanos quando vamos escolher o que vai para a mesa e não temos muito tempo disponível. Pelo hábito, cansamos de jogar muito de boa o Cat Lady em 15 ou 20 minutinhos - isso depois de conhecermos muito bem as cartas e suas possibilidades. É bom demais e não é só porque é rápido. A arte, que leva a mesma assinatura do designer, é a coisa mais fofa; o design focado em seleção aberta de cartas e coleção de componentes deixa tudo mais divertido; e cuidar de gatinhos é muita apelação até para mim, que sou mais pela cachorrada. Nós somos uma "dama dos gatos" (a "véia dos gatos" em bom português) buscando pontos de vitória. Dá para pontuar por felinos alimentados, pela coleção de brinquedos e adereços e também pelas ervas de gato - quem não fica legal, né? A novidade dessa última partida foi a adição da bela expansão Cat Lady: Box of Treats (2020), que estava há um tempo esperando sair da caixa para trazer mais possibilidades de pontos de vitória com petiscos e mimos. Os acréscimos de Box of Treats não deixam a coisa mais complexa nem mudam consideravelmente a jogabilidade, o que é, ao meu ver, um mérito de Josh Wood, que não precisava inventar demais diante de uma caixa base já muito bem desenhada e exitosa.
Os rituais da vida
Por ventura, constatei que todas as vezes em que Marcela e eu fomos juntos à luderia Balboa's Hobby Games, esse dia foi 31 de maio. Sozinho, já fui inúmeras outras vezes à luderia, mas o casal delícia aqui, aparentemente e inexplicavelmente, só entra lá se for no último dia do mês cinco. É importante destacar que foi em momentos assim que conhecemos jogos dos mais deliciosos da face da terra, a exemplo de Quarto, Exploradores e Tokyo Highway. É claro que, pela quantidade exagerada de títulos que temos na estante, não há tanta necessidade de recorrermos às luderias, mas é certo que esse contato com outros acervos e, principalmente, com outras curadorias, nos move para lugares sempre agradáveis. Então, afeito que sou a rituais, gostei da ideia de marcarmos presença neste 31 de maio mais uma vez e, como novidade, levando junto a filhota Eduarda e seus 4 anos de gaiatice. A piveta ficou em êxtase, quis experimentar vários jogos e só aceitou voltar para casa porque deu a hora de a Balboa's fechar. Fomos de Leo, Animal Upon Animal, Jenga, Dobble Kids, Ubongo! Junior, Nhac Nhac e Caça aos Monstros - esses três últimos foram os preferidos da Eduarda, que, por óbvias razões, foi quem mais aproveitou o ritual.
Algumas fotografias estão agrupadas em carrossel: experimente passar o mouse sobre / tocar uma delas e usar as setas para acessar as demais.
Regis Torquato Tavares admira jovens clássicos (Carcassonne; Agricola), ama abstratos (Hive; YINSH) e se diverte um bocado com jogos de destreza (Futebol de Botão; Set & Match; PitchCar). Ressente-se de não ter uma estante que cubra todas as paredes da sala, mas fica feliz da vida só em apresentar novos joguinhos por aí.